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Por dez anos processado, mas valeu. Soltaria os tigres de novo.

  • caiobrandao90
  • 17 de jul. de 2022
  • 5 min de leitura

De costas para os tigres, eles ensaiavam o bote, mas se fingiam de desentendidos e desconversavam, quando, de supetão, eu ficava de frente para os felinos. Por dez anos processado, mas faria de novo, valeu. Experiência incomum para alguém, como eu, que gosta de animais e.... de todos eles, sem exceções, estas últimas existindo, apenas, no tocante aos racionais.


Antônio Caixeta foi diretor do Jardim Zoológico de Belo Horizonte, um velho amigo. Telefonou-me numa manhã de sábado, com proposta tentadora. Indagou se estaria disposto a comprar da Fundação Zoobotânica, um casal de filhotes de tigres siberianos. Os filhotes estavam mal acomodados no Zoológico, por falta de vaga em berçário, e precisavam de espaço mais adequado. Concordei de pronto, e na esteira da compra foi construído um “tigreiro”, em minha residência, dotado de dormitório, área de recreação, tanque para banhos e maternidade. Junto, com os tigres, veio funcionário celetista, tratador de felinos no Zoológico, Cléber Eustáquio, que do emprego se desligou, para trabalhar em minha casa, onde permaneceu por mais de 20 anos, até se aposentar.


Os animais eram de beleza excepcional. Vê-los crescer, entrando e saindo do tanque, onde nadavam, com frequência, tomando sol, afiando as unhas poderosas, em tronco de pequizeiro, trazido da fazenda Querença, em Sete Lagoas, era soberbo. Mas, isto não me bastava. Eles cresciam e, com eles, crescia junto o meu desejo de vê-los correr jardim afora. O terreno era enorme; eu soltava os felinos e os perseguia com uma velha vassoura de piaçava, pisoteando o gramado e me esquivando das plantas exóticas cultivadas pela Dona Anna, que, tanto, quanto eu, ou, mais, ama incondicionalmente os animais. Os filhotes corriam juntos, em paralelo, mas se separavam de repente, um para cada lado, e se encontravam de novo, no outro extremo, fechando desenho de trajeto em forma de círculo. Os tigres, aos quinze meses, pesavam em torno de cento e cinquenta quilos, e o seu porte, avantajado e imponente, chamou a atenção dos vizinhos. Aliás, de uma vizinha, em particular, que temia ser atacada e devorada viva pelos felinos. O temor daquela senhora, considerando o seu total desconhecimento da natureza dócil dos filhotes, criados na mamadeira, era aceitável. Mas, ceder ao medo e ao desconhecimento da vizinha, sem luta, não era do meu feitio, e a luta aconteceu. Foram denúncias várias contra mim, nas polícias civil e militar, na polícia florestal, nas instituições relacionadas à proteção do meio ambiente, até, que, foi ajuizada, em meu desfavor, ação ordinária construída sob argumentos alarmistas, inclusive de iminente risco de vida, tendo o juiz, de primeira instância, em medida liminar, decretado a retirada dos animais de minha casa e a sua devolução ao Jardim Zoológico.


O teatro de apreensão dos tigres aconteceu numa manhã, em procedimento ensaiado. Quando abri o portão da garagem, para ir ao trabalho, havia multidão silenciosa defronte a casa, escudando oficial de justiça sequioso pelo cumprimento do inusitado mandado. Ele me intimou com ar de superioridade, e a multidão ameaçou entrar junto com o meirinho, para o interior da propriedade, mas não permiti. O oficial deu alguns passos, percorrendo o jardim, sendo informado que os tigres tinham sido alimentados há pouco e, que, se dopados fossem, para o transporte, poderiam ter a saúde comprometida e vir a óbito. O oficial acatou o argumento e concordou em aguardar algumas horas, pela digestão dos felinos. Eu olhava para o oficial, ele olhava para mim, ambos olhávamos para os felinos e a multidão, do lado de fora e inconformada, olhava para a sarjeta. Havia conseguido algum tempo, mas, não muito. A multidão, decepcionada, se dispersou, restando apenas uns dois ou três remanescentes recalcitrantes, os quais ameacei espancar, com um pedaço de caibro, o que os fez correr rua abaixo, gritando impropérios e rasgando elogios à minha genitora.


A demanda se alongou, como tudo na Justiça. Tramitou por mais de dez anos e foi parar no Tribunal, em grau de apelação. O desembargador relator sorteado era meu primo, Brandão Teixeira. Sabia do risco envolvido, mas telefonei para o amigo, na tentativa de acrescentar informações sobre a docilidade dos felinos. Brandão dispensou-me o carinho de sempre, perguntou pela família, desligou e, nos autos, se declarou suspeito para julgar a causa. Houve redistribuição do processo e, marcado o julgamento, o meu renomado advogado, Aristóteles Atheniense, também motivado pela robustez dos seus honorários, sustentou oralmente as minhas razões. Em breves quinze minutos de empolgação e sem contar com a atenção dos desembargadores, que pareciam ter assunto diferente para tratar, Aristóteles se equivocou e chamou, reiteradamente, de leões os meus tigres. Diante do cenário e dos antecedentes da demanda, o insucesso me pareceu óbvio e, de fato, aconteceu: perdi a causa.


Agora, leio no livro de memórias, recém-lançado, do ex-governador e ex-prefeito de Belo Horizonte, Eduardo Azeredo, livro pelo mesmo escrito no período em que esteve recolhido ao Quartel do Corpo de Bombeiros, em face de condenação criminal, episódio ora superado, a seguinte menção: “Em abril de 1990, ao assumir a titularidade da PBH, solicitei que as investigações continuassem e cobrei uma definição. A Corregedoria ouviu os funcionários do zoo, analisou documentos e concluiu que realmente dois tigres e várias espécies de aves exóticas tinham sido levadas para Pitangui. Entretanto, relatório da auditoria afirmou tratar-se de venda legal. Neste caso, o tigre foi adquirido por engenheiro de uma grande empresa, que o deu de presente ao ex-governador, seu amigo. Os funcionários do zoológico, segundo a Corregedoria, limitavam-se aos cuidados necessários para o transporte do animal. O processo foi arquivado do ponto de vista da administração pública”. Pois, digo eu, não dei nenhum tigre para o Newton Cardoso, e sequer sou engenheiro. As aves exóticas, em minha casa, pertencem à minha filha, Sophia, bióloga e veterinária. Enfim, é sabido que na política o que vale não é o fato, mas a versão do fato.


Contudo, os tigres do Newton e os meus não se confundiam. Fofão e Mocinha, eram os seus nomes, corriam pelo jardim de minha casa, perseguiam passarinhos e se deixavam acariciar de barriga para cima. Tinham pelagem reluzente, perfeita, e gostavam de lamber as nossas mãos, as minhas e as da Anna, e, as dela, principalmente. Eram alimentados em dias alternados, e comiam carne de cavalo refrigerada, trazida de frigorífico sediado em Curitiba. Fofão e Mocinha foram notícias no rádio e na televisão, posaram para vídeos e fotos, parecendo serem de pelúcia e ficaram notórios. Permaneceram semanas na mídia, receberam abaixo-assinado em seu favor, com milhares de assinaturas, e tiveram as suas fotos estampadas em camisetas, distribuídas em eventos esportivos. No Zoológico, Mocinha morreu durante parto decorrente de prenhes não autorizada por mim, e Fofão não contou, nem de longe, com as atenções que recebeu em minha casa e também morreu no zoo, sem que dessa morte eu tenha sido informado à época.


Enfim, passou, mas valeu. Faria tudo de novo.

 
 
 

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5 comentários


Convidado:
19 de jul. de 2022

Caio:

Essa me deixou deveras impressionado! Uma aventura africana no seio da Capital Mineira!

Não tive a oportunidade de conhecer os dois bichanos , mas, da forma que expõe o drama, com a competência de sempre, demonstra que tudo foi fruto da bondade que Você e Ana tiveram pela proteção dos mesmos! Algo incomum no mundo ocidental! Parabéns pela coragem e disposição! Abrs

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Convidado:
17 de jul. de 2022

Que história. Incrível se imaginar isto no Brasil. Triste final para os dois. Forte abraço.

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Convidado:
17 de jul. de 2022

Bacana Caio.

Essa história, fala muito da sua personalidade. Humana, carinhosa, companheira e diligente.

Como um tigre, dócil na hora certa, e feroz nos momentos propícios.

Um grande abraço.

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Convidado:
17 de jul. de 2022
Respondendo a

Só mesmo vc. e Ana poderiam ter o bom gosto- inda que um tanto inusitado- de ter caminhando imponentes em seus jardins um casal de tigres. Imperdoável que o saudoso grande jurista e excelente pessoa humana,Dr. Aristóteles , os tenha tratado como leões que, apesar de Reis dos animais, são bem mais feios que os tigres!!

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