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O vice-governador pegou o currículo, limpou a boca, amassou e jogou-o atrás do sofá

  • caiobrandao90
  • 27 de ago. de 2022
  • 3 min de leitura

Passava das onze da noite, quando Sérgio Carvalhaes me telefonou: “Cáio, estou em casa, com o Homero Godoy, recebendo o vice-governador João Marques de Vasconcelos, e preciso da sua ajuda.’ Sérgio estava com o currículo em mãos, para pedir ao João oportunidade de emprego no governo, mas constrangido em fazê-lo. Tudo bem, Sérgio, estou indo agora, respondi.


João Marques, hoje com 92 anos, era vice do então governador Francelino Pereira, no início da década de 80, um político do bem. Tinha sido seminarista franciscano e se tornado noviço no Convento de São Boaventura, em Bento Gonçalves. Entretanto, esse não era o seu destino. João Marques formou-se em direito, tornou-se poliglota e lecionou português, latim, espanhol, francês, inglês e, por acréscimo, foi professor de matemática. Além desses talentos e face a notável exacerbação testicular, tornou-se pai de nove filhos e também pintava bons quadros nas horas vagas. Publicou livros, escritos que o conduziram, merecidamente, às Academias Municipalista de Letras, em Belo Horizonte, e Sul Mineira de Letras. Na vida política João Marques debutou como vereador, em Muzambinho, sua terra natal. Foi deputado federal e compôs a chapa Francelino Pereira, no governo de Minas, além de se tornar, na cidade de Contagem, um dos cartorários mais prósperos do país, mediante concurso público. Enfim, João não era pouca coisa, e a conversa teria que ser bem articulada.


A minha relação com o João Marques era amigável; eu havia oferecido algumas sugestões ao “Programa de Contribuições ao Estudo de Problemas Mineiros”, por ele criado, e o vice tratava-me com respeito e consideração, mercê, inclusive, de uma memorável viagem ao Rio de Janeiro, empreendida sob a tutela de mera diversão. Portanto, não era meu propósito gastar com o Sérgio esse cacife, mas, como “aos amigos tudo”, segui para o abate, sem reclamar.


Sérgio estava no limbo, em termos profissionais, mas o apartamento era amplo, confortável e bem decorado. Na mesinha de centro alguns aperitivos, salgadinhos de confeitaria, circundando garrafa de whisky Dimple, de 15 anos, destilado de ótima qualidade. Homero discursava inflamado, abordando a inutilidade do estado, quando o mesmo pratica autofagia e se alimenta daquilo que ele mesmo produz. O estado autofágico, dizia o Homero,” não avança e sequer atende os interesses da sociedade, porque ele é insaciável na sua ânsia de exaustão em despesas inúteis, como nos empregos distribuído a apaniguados”. Um bom discurso e sempre atual, mas João Marques, distraído, concentrava a sua atenção em exaurir a garrafa de uísque que, ainda pela metade, se oferecia à sua frente, desprotegida. Melhor, assim, porque o encontro se tratava, exatamente, sobre emprego.


Em dado momento, tendo o João se erguido, em direção à mesa de centro, para renovar as pedras de gelo ,em seu copo, Sérgio, de pé, com olhar aflito e o indicador subindo e descendo, como um pica-pau, e apontando para as nádegas do convidado, mostrou o currículo, que jazia esquecido sob a bunda da autoridade. Aproveitei o lapso e rapidamente resgatei o papel, sem chamar à atenção. Coloquei o documento sobre a mesa maior, de jantar, fiz o desamasso grosseiramente, e retornei ao sofá, sentando-me ao lado do João, à espreita de oportunidade. Mediante intervenção do Sérgio, no debate, em meio a respiração ofegante do vice, pedi a palavra e entreguei o currículo, fazendo-o mediante encômios de apoio à admissão do Carvalhaes no governo, face o seu preparo acadêmico, experiência de vida e outras tantas louvações. João Marques agradeceu, como fato novo naquela noite, colocando o documento do seu lado direito, próximo ao braço do sofá. A conversa seguiu animada, mediante bordões cotidianos, o vice sorveu a garrafa até os estertores da mesma e, de repente, teve um refluxo duodenal gástrico. Não teve dúvidas: pegou o currículo posto ao lado de sua perna direita, levou-o à boca e limpou o fluido, que escorria pela sua face. Após, com a mão direita, amassou a perspectiva de futuro do Sérgio, impressa no guardanapo improvisado e jogou-o ao chão, sem cerimônia. Sérgio, atônito, e mediante o emprego fácil e generoso, que lhe escapava por entre salgados, uísque e abatido por um mísero refluxo, pediu licença e se retirou para o interior do apartamento. Carvalhaes, em poucos minutos retornou à sala, mas vestido de pijamas e bocejando; agradeceu a nossa presença, disse que não estava bem e que iria se recolher. Levantamo-nos, agradecemos, Homero tomou o seu caminho em direção à rua Nova Era, onde morava, dei carona ao nosso querido vice-governador, até o Bairro Belvedere, e a noite terminou como se não tivesse acontecido.


Nem tudo eram flores, mas foram bons tempos. Quanto ao Sérgio, acabou sendo diretor de uma multinacional, sem pedido político ou sequer a interveniência de pistolões.

 
 
 

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1 comentário


Convidado:
27 de ago. de 2022

Como de hábito, uma leitura deliciosa e sorvida de um fôlego só. Parabéns

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