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O temor reverencial

  • caiobrandao90
  • 25 de fev. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 5 de jun. de 2022

A convivência em sociedade não é fácil, porque as pessoas costumam ser muito diferentes entre si e as suas opiniões divergem, é natural. Mesmo criados sob o mesmo teto, irmãos costumam ostentar diferenças inquietadoras e até mesmo na cúpula da Igreja Católica podem existir opiniões divergentes. Neste caso, para dirimir dúvidas e eventuais contradições entre os bispos, existe o Sínodo, mas, em ponto maior, na eleição dos Papas, é convocado o Conclave, reunião do Sacro Colégio de cardeais, que se trancam num aposento chamado Metonímia, lugar onde tramam apoios e articulam conspirações perversas. Este ritual, convenhamos, não é muito diferente dos conchavos articulados entre deputados para a eleição do presidente da Casa. Enfim, não existem milagres, nada é de graça, com perdão pelo trocadilho. O embate de forças é sempre necessário, quer seja a força do argumento, do poder instituído, da influência de alguns e do mau-caratismo de outros. Sobre a eleição do Papa não me digam que os votos dos cardeais são oriundos da inspiração divina. Acho que Deus, em sua sabedoria, não arriscaria um palpite dessa magnitude porque, muito provavelmente, se decepcionaria, como aconteceu no tocante a Adão, aquele que se envolveu em mordida pecaminosa em plena descoberta dos desejos carnais. Logo, que me perdoem os clérigos, os carolas e os beatos de todos os matizes, porque fico na defensiva sempre que humanos depositam o seu voto a favor deste ou daquele outro. Acho a “eleição” entre os animais mais autêntica, porque não há conchavos e nem conclaves. Os bichos saem no grito, na mordida e no coice, resolvendo na porrada a implantação da liderança do grupo. Isto também acontece nas favelas, hoje chamadas de aglomerados, onde os grupos se maltratam até que um deles consiga a hegemonia, mormente em conluio com policiais corruptos e oportunistas de ocasião. Enfim, é isto: consegui misturar pessoas do vulgo, clérigos, papas, bichos de toda espécie, políticos, favelados, milicianos e policiais corruptos, todos no mesmo saco e se traduzindo na mesma farinha. É o planeta em que vivemos, onde tudo é muito parecido.


Estas preliminares me fazem lembrar do temor reverencial, algo que jamais incorporei na avaliação que faço das pessoas cotidianas, estando elas ou não investidas de poder, qualquer que seja a sua natureza e extensão.


Em Florianópolis, a multinacional brasileira onde trabalhei por mais de vinte anos, estava empenhada na construção de estação de tratamento de esgotos e executava as obras nas proximidades da Ponte Hercílio Luz. O projeto da ETE contemplou localização muito controvertida à época, e que resultou, inclusive, numa CPI, para discutir a possibilidade de dispersão de odores fétidos capazes de comprometer o bom nome da querida Floripa. O responsável pelo projeto, da empresa Engevix, contratada pela municipalidade, engenheiro José Antunes Sobrinho, a quem passei a admirar pela sua inegável competência, passou maus momentos, segundo divulgado pela imprensa na ocasião, para aplainar os argumentos dos deputados, tão raivosos quanto o seu desconhecimento ( deles ), das premissas e fundamentos que apoiavam os estudos técnicos e financeiros orientadores da escolha do local da Estação. Enfim, entre mortos e feridos salvaram-se todos, mediante a conclusão das obras, o bom funcionamento da ETE e o sepultamento dos boatos de que a escolha do local teria sido feita da janela do hotel existente próximo ao mesmo, por algum aventureiro tomado por ilações etílicas e em meio a confraternização com algumas beldades da região. Tudo mentira, mera fantasia dos detratores que se quedaram vencidos em face do sucesso do empreendimento, e deixaram para trás essa versão exótica e intrigante.


Foram tempos difíceis. O dinheiro era curto, existia verba municipal, do estado e também do governo federal. O problema é que havia inflação alta, correção monetária disparada e os valores oriundos de fontes diferentes nunca chegavam ao destino ao mesmo tempo. Assim, a obra foi sendo custeada, em grande parte, pela empresa construtora, o que comprometia não apenas o fluxo de caixa da mesma, como também a rentabilidade da obra e o prazo de sua execução. Mas, sem alternativa, o negócio era ir levando….


Nas reuniões dos executivos envolvidos no projeto, várias eram as propostas de ações voltadas para alcançar o recebimento dos valores represados para o custeio das obras da Estação. Uma delas, que resultou aprovada como meu voto de minerva, foi a empresa convidar o governador de então, Vilson Kleinubing ( gaúcho adotado pelos catarinenses, que foi prefeito de Blumenal e também senador ), para um almoço de trabalho. Nesse evento o governador, além de almoçar em nossa companhia, teria a oportunidade de conhecer o relatório físico-financeiro da Estação, os seus problemas e soluções, além de ter a oportunidade de participar de debate entre os representantes do governo e a equipe da empresa construtora. E assim foi feito, com grande êxito para os debates acerca do cronograma físico. Contudo, quando da introdução da explanação sobre o cronograma financeiro, o governador, espertamente, se levantou e disse aos presentes que lamentava, mas que havia sido chamado com urgência para tratar de assunto relevante, e que teria que se retirar. Sem ter o que fazer eu o acompanhei até a porta do refeitório do canteiro de obras, local do encontro, seguido por alguns de seus assessores, e deixei-o girar a maçaneta da porta, que se encontrava trancada, por minha ordem. O governador forçou a maçaneta mais de uma vez e me olhou com ar de repreensão. Imediatamente me desculpei e pedi ao engenheiro Mário Baltar, meu companheiro de trabalho, para encontrar a chave e liberar a porta. O Baltar, em cumplicidade comigo, desapareceu serpenteando por entre as mesas do refeitório, enquanto eu pedia ao governador que aguardasse alguns minutos a liberação da porta, em cujo lapso eu lhe apresentaria, rapidamente, os nossos pleitos de recebimento dos pagamentos em atraso. Mas, o governador era esperto, não engoliu a jogada. Me olhou dentro dos olhos e disse, em tom firme: doutor Caio, não se preocupe com a chave, vou mandar arrombar a porta. Em face disto, recuei, mas não me dobrei. Doutor Kleinubing, retruquei, sou conhecido por não ter nenhum temor reverencial pela autoridade, mas reconheço que hoje exagerei. Não precisa arrombar, a chave está comigo. Ele sorriu, como bom político e finalizou colocando a mão direita no meu ombro: passe amanhã em meu gabinete, mas não se preocupe, porque a minha porta não tem chave, mas tem dois seguranças.

 
 
 

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