No Terreiro, de capa, tridente e com charuto aceso na boca
- caiobrandao90
- 2 de jul. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de jul. de 2022
A espiritualidade sempre bateu à minha porta e às vezes bateu forte. Aos nove anos assisti, em família, parte de sessão de materialização, realizada por médiuns de rara e elevada sensibilidade, que expeliam ectoplasma abundante pela boca, poros, nariz e ouvidos. Este fluido etéreo se apresenta, do ponto de vista da matéria, na aparência de geleia viscosa e semilíquida. A minha presença na sessão foi rápida e acidental, mas suficiente para acarretar marcante, apesar de passageiro, transtorno psicológico. O surto aconteceu, principalmente, em face de cabeça de espírito materializada sobre mesa onde, pausadamente e com voz arrastada, a entidade conversava com os presentes. Evento dessa natureza era incomum à época e, na atualidade, quando realizado, ocorre sob as limitações decorrentes da indisponibilidade de médiuns dotados da necessária vibração de espiritualidade e notável evolução exigidas.
Mas, não parei por aí. Na adolescência convivi com o famoso médium Zé Arigó, através de uma prima, Marci Brandão que, com o José Pedro de Freitas, era este o seu nome, mantinha discreto e também intenso relacionamento. O Zé Arigó costumava receber pacientes na residência de meus pais, à rua Caldas, em Belo Horizonte. As sessões não avançavam além de cirurgias de catarata, em que pesem os dons do médium que, mediante a incorporação do espírito do doutor Fritz, médico alemão, realizou em várias oportunidades e, em outros locais, inúmeras cirurgias invasivas, para a retirada de tumores no fígado, estômago e em outras partes do corpo. Com a casa cheia e o médium no centro da sala, Arigó segurava grande volume de algodão hospitalar, levantava os braços, orava, e o algodão descia pelas suas mãos encharcado de líquido inodoro e com a aparência de água. O líquido, que o médium utilizava como anestésico, também era usado para esterilizar os locais das intervenções. Ele operava com canivete comum, curto, de ponta arredondada, cujo instrumento introduzia nos olhos dos pacientes e dos mesmos retirava pequenos fragmentos de tecido vivo e com pouco sangramento. Eu permanecia ao lado do médium, com o braço direito esticado e o Arigó, à medida que retirava fragmentos dos olhos dos pacientes, limpava o canivete deslizando-o na minha pele. Finda as cirurgias eu circulava pelo ambiente e exibia o braço, com os restos de tecidos humano nele grudados. Alguns aproximavam o rosto para melhor enxergar e balbuciavam, entre si, comentários de surpresa e espanto.
Ruy Nogueira Netto, mineiro, publicitário, residente em São Paulo, me enviou mensagem numa quarta-feira, às 9 da noite. Perguntou “se eu tinha interesse em conhecer algo oriundo das profundezas,” dito por ele. Respondi que sim, haja vista a minha sempre acesa disposição para lidar com o inusitado. Marcamos encontro na cidade de Pouso Alegre, no Sul de Minas. No horário aprazado, alertado pela recepção do hotel, desci apressado. Ruy estava acompanhado de três amigos, sendo um deles uma jovem, e chegou num Volvo C-70, cheirando a novo. Apertamo-nos no carro, seguindo por estrada de terra para chácara próxima. O local era simples e fomos recebidos na varanda da casa. A anfitriã nos agrupou e no nosso entorno, desenhando um círculo, derramou líquido inflamável ao qual ateou fogo e cujas chamas, avermelhadas, elevaram-se a não mais do que vinte centímetros. Ficamos em silêncio, o fogo se apagou e nos dirigimos para o interior. Em uma sala ampla fomos acomodados em bancos semelhantes aos de igreja, enquanto ouvíamos os sons vindos de recinto contíguo, do qual também enxergávamos, através de cortina de fina textura, movimentos opacos de pessoas, que interagiam entre si e com os sons de atabaques e cantorias.
Em vinte minutos fomos chamados a integrar o grupo ritual na sala ao lado. O cômodo era retangular e, no centro, em desnível e de forma ovalada, jazia um piso secundário, recoberto de areia lavada. Nos cantos, altares ornados com as figuras de Orixás, Exus e outras entidades do mundo cabalístico, e numa das paredes o altar principal, imponente e inspirador, regido pela imagem esculpida do Mestre Caveira, que se projetava do altar, sobre a falange, em austera presença.
Ficamos sentados, em pequenos tamboretes, em cantos separados, até sermos convidados para o espaço central e colocados de pé, enquanto o amigo do Ruy, que dirigia o Volvo, foi posto deitado de barriga para o chão e com a testa alojada em pequeno monte de resíduos, mistura de areia grossa com fragmentos de ossos humanos moídos. A receita era macabra, mas parte importante do ritual. Permanecemos, em volta do “paciente”, todos paramentados com capa vermelha, charuto aceso na boca e um tridente na mão direita. Em dado momento Pai Pedro adentrou o recinto, incorporado, bebendo cachaça e se contorcendo na coreografia de dança peculiar ao Exu Caveira. O “cavalo”, grande, obeso, mas, também leve e ágil, chegou ocupando os quatro cantos do Terreiro. Girava em torno de si mesmo, e se movimentava velozmente, no ritmo de afoxés, atabaques e agogôs, tambores cônicos e afunilados, freneticamente batucados pelos Ogãs, todos escolhidos a dedo pelo Caveira e devidamente “iniciados”. O couro dos tambores, retirado de caprinos, era curtido com sangue de galo, em ritual próprio, quando da imolação dos animais e sob as bênçãos dos Orixás. Com o Ruy ao meu lado, temi que ele incorporasse algum exu, em face da ardência do ritmo intenso e contagiante, que promovia a conexão com as entidades presentes que, em frenesi, começavam a se manifestar nos cavalos. Pai Pedro dançava, estalava os dedos, saltava alto e retornava com leveza ao piso de areia, seguido por vários discípulos, que também dançavam e entoavam os pontos cantados do Caveira. O ambiente foi dominado por fumaça oriunda da” “fundanga”, espécie de pólvora destinada a efeitos especiais, que eclodia em sintonia com o ritmo dos tambores, enquanto eu percebia, no Ruy, o olhar se multiplicar em rápidos e inusitados movimentos. Algumas mulheres gargalhavam alto e expandindo sons penetrantes, jogando para trás, da cintura para cima, os seus corpos que, da cabeça, projetavam os cabelos compridos, cujas pontas chegavam a tocar o piso de areia.
De repente a música cessou. Uma mulher trajando vestes nas cores preta, branca e vermelha, entrou trazendo uma bandeja enorme, de aço inox, e no centro da mesma, a cabeça de um bode preto, com chifres, recém-sacrificado e com traços de sangue vivo escorrendo das narinas. A cabeça decepada do bode foi colocada sobre a nuca do amigo do Ruy, que permanecia deitado, enquanto uma jovem, também incorporada, encheu uma das mãos com o sague remanescente da cabeça do cavicórneo, e com os dedos lambuzou as nossas caras, enquanto éramos orientados a espetar na areia, próximo aos braços esticados do “paciente”, os nossos tridentes.
Até, então, no Terreiro, encontrava-me na condição de curioso, mas a fumaça recrudesceu, o batuque aumentou, a dança me envolveu e a cantoria reverberou, intensa e contagiante. Comecei a sentir uma influência inusitada, algo espiritual e de aproximação sedutora e sutil, que me abraçava sinalizando que era hora de sair, ou, então, de ceder ao momento, entregando-me à falange. Preferi me afastar, fiz sinal para o Ruy e, devagar, sem alarde, e caminhando no ritmo de agogô, deixamos o salão. Do lado de fora deparei com várias capelas, estreitas e compridas, adornadas com motivos da Quimbanda e decoradas com encantamentos de magia, sob a proteção do Orixá Omolu, regente da falange dos Caveiras. O Ruy, provedor de uma delas, abriu a porta e do interior da capela reluziram imagens alusivas aos Orixás, Exus, estatuetas de Pombagiras, de Caboclos e Pretos Velhos, além de velas acesas, copos d’água, tigelas com pólvora, garrafas de cachaça e luz tênue, quase penumbra. Segundo o Ruy inúmeras famílias de empresários, banqueiros e grandes comerciantes mantinham, no local, as suas oferendas, e que muitas fortunas de São Paulo eram sustentadas pela macumba.
Na saída, perguntei ao Ruy Nogueira: “E, então, Ruy, qual o propósito do trabalho?”. “Pergunte ao Exu Caveira, respondeu.” Então, completei: “Laroiê, Exu”.

O grande escritor e contista Caio Brandão sempre nos entretendo com seus escritos. Mas fiquei curioso para saber como terminou a sessão no interior da casa. Valeu!!
Um interessante depoimento jornalístico. Muito bom. Tive oportunidade de presenciar alguns eventos com forte semelhança. Forte abraço.