Hospitalidade Mineira
- caiobrandao90
- 15 de mar. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 5 de jun. de 2022
E lá estava eu, aos sete anos de idade, no “campo de aviação” de Ubá, na Zona da Mata, prestes a embarcar no monomotor do Ismael, piloto autônomo, que me traria de volta a Belo Horizonte. Ismael fazia uma linha quase regular entre as duas cidades, e a minha reserva, no avião, era frequente. Quando a família se cansava da minha presença, nas férias escolares, por mau comportamento, me devolvia à origem de forma rápida e quase segura. Fábio Barletta, cunhado de minha mãe, Nair, era o responsável pelo despacho do “pacote”. Advogado com expertise na área criminal e solene por natureza, Fábio me ensinou o primeiro discurso que proferi na vida. Já embarcado, e com a cabeça posta para fora da cabine do pequeno avião, eu discursava em voz alta: “meus amigos, não há amigos; só há amigas”. Anos adiante, em se tratando de relacionamentos, eu compreenderia os por quês de não exigir dos amigos reciprocidade alguma e, no tocante às amigas, a conveniência de evitar deseja-las, em que pesem testosterona adolescente e imaginário fervilhante, binômio que passava por intrincadas elucubrações de foro íntimo e ereções vigorosas e frequentes. Sob esse prisma, décadas depois telefonei para uma amiga ubaense, que por sua vez reunia as melhores amigas, todas na faixa dos sessenta, em uma comemoração natalícia. Atendido com entusiasmo, disse-lhe em tom de brincadeira verdadeira: Ho! diga às meninas que na minha adolescência eu não as comi, porque eu era muito novo e, agora, não as procuro, porque elas estão muito velhas”. Enfim, a construção de minha autoestima, às vezes exacerbada, pode ter começado com o discurso na escada do avião, não pelo conteúdo do mesmo, do discurso, mas pela descoberta de que eu podia pensar, articular palavras bem orquestradas e me fazer enxergado pelas pessoas, este um excelente achado, e que seria muito útil ao longo da vida.
Comecei muito cedo a minha jornada como jornalista. Na rua Caldas, no bairro do Carmo, onde residia, em Belo Horizonte, aos onze anos de idade eu mantinha um jornal mimeografado e impresso à álcool ( sistema da época ) intitulado O Mirim, no qual publicava notícias do entorno de minha casa, dos moradores vizinhos e algumas trovas da lavra de meu pai, Paulo, exímio na arte de trovar com inteligência e malícia. E foi assim, jornalista mirim, que fui parar no Jornal O Diário, de propriedade da Cúria Metropolitana, aos dezessete anos, levado pelo jornalista Flávio Ferreira da Silva, competente, criativo e bem articulado, mas que acabou sendo induzido ao suicídio, em face de questões conjugais mal resolvidas.
Aos dezoito anos a minha carteira de trabalho foi assinada pelo Jornal O Diário, em data de 1º de Maio de 1968, Dia do Trabalho. Um bom agouro, mas, que, também, sinalizava árduas labutas para a escalada que ainda se mostrava encoberta na linha do horizonte.
A escalada, de fato, não apenas foi, como continua sendo, muito trabalhosa. E parte desta, logo nos primórdios da vida profissional, aconteceu na cidade de Jequitinhonha, às margens do rio de mesmo nome, o famoso Jequitinhonha, cuja denominação significa, no dialeto dos índios Maxacalis, “rio largo e cheio de peixes”.
Por volta das onze horas o avião, que transportava o doutor Maurício, aterrissou em pista de terra, na cidade, empoeirando os cabelos e as vestes das centenas de pessoas que aguardam, ansiosas, a chegada do diretor do Departamento de Águas e Energia Elétrica, o engenheiro Maurício Campos, que depois veio a se tornar prefeito nomeado de Belo Horizonte, mercê de sua amizade com o então governador à época, Francelino Pereira dos Santos. E, junto, no avião, eu também me encontrava, como repórter, integrando a comitiva do diretor, em uma das minhas primeiras missões na qualidade de enviado do Jornal.
Recebidos com alarido, abraços, cumprimentos, tapinhas nas costas, afagos entusiasmados e até por uma pequena “fanfarra”, que se esbaldava em aspergir notas dissonantes, o doutor Maurício e sua comitiva foram levados pelos políticos locais para um formidável almoço que aconteceria na Fazenda Campo Novo, naquela cidade. O proprietário era o renomado Coronel Epaminondas Cunha Melo, homem de grande influência na região, rico e notável criador de jumentos da raça Pêga e de cavalos Campolina, além de fabricar a prestigiada cachaça Granfina, de muito boa qualidade. O festejado almoço, oferecido pelo Coronel, em nome da comunidade, era retribuição ao trabalho realizado pelo doutor Maurício, através do DAEE, para a implantação do sistema de energização do Vale do Jequitinhonha, promessa de campanha do governador eleito pela via indireta, Francelino Pereira, este, com fortes laços de amizade em todo o Vale do Jequitinhonha.
A chegada da comitiva à fazenda Campo Novo se mostrou triunfal. O doutor Maurício foi ovacionado ao longo de todo o percurso e, principalmente, no portal de entrada da propriedade, onde se encontravam dezenas de pessoas aplaudindo a sua passagem. Ambiente de festa dispendiosa e sincera, haja vista a chegada da energia elétrica tão necessária, esperada e desejada, com mesas emendadas umas nas outras, perfazendo comprimento de mais de cinquenta metros de extensão, e guarnecidas por toalhas finas e comidas e bebidas de todos os tipos, naipes, cores, em mostra de secular gastronomia de inspiração mineira e europeia. Era muito gasto, muita gentileza, muita gratidão daquela gente simples e ordeira.
O doutor Maurício foi chegando de mansinho, bem “despacito”, mas jeito de quem estava apertado para fazer xixi, e disse, bem de perto, ao ouvido do Coronel, algo inaudível para os demais. Este, o Coronel, corpulento, com a pele da cor da lida da fazenda, e dotado de vozeirão de amansar jumento, gritou para o capataz da Fazenda: “Ô Tião, o doutor Maurício tá com sede. Ele qué água de coco. Traz água pro doutor Maurício, rápido, rápido, vá logo…. homem de Deus!!!!” O capataz saiu às pressas, tropeçando nas próprias botinas e retornou minutos depois, ofegante e com expressão de quem engoliu caroço de abacate e disse embolando as palavras: “Coronel, não vai dar, Coronel. O coqueiro tá muito alto e não tem escada, Coronel”. Epaminondas, o velho guerreiro, o Coronel tropeiro experiente e sagaz, foi logo gritando: “Que qui é isso, TiãO!!! larga mão de bobagem, criatura. DERRUBA LOGO O COQUEIRO!!!”

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