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Francelino, a Bíblia pagã e o dedo grosso do general

  • caiobrandao90
  • 30 de abr. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 5 de jun. de 2022

Conheci o Francelino Rocha em 1957, no primeiro ano do curso primário, no Colégio Dom Silvério, em Belo Horizonte. Lá se vão 65 anos e continuamos vivos, por enquanto. Passamos várias etapas, no colégio, convivendo com as manhas maristas, usando uniforme, rezando todos os dias o terço, na aula de religião, assistindo missa às sextas-feiras, quando comungávamos e aspirávamos, ansiosos, pelo agraciamento com o diploma de Honra ao Mérito, uma espécie de comenda conferida aos alunos e não mais sei a que título tais méritos se referiam, mas o Francelino ganhou vários.


O destino se encarregou de também nos unir, eventualmente, na idade adulta, mediante interesses comuns no segmento negócios. Francelino, durante algum tempo, esteve associado ao conhecido Jorge Luz, profissional da área de projetos, sócio majoritário da Rota Engenharia, que culminou a carreira obsequiado pelos mimos do Juiz Sérgio Moro, mas, que, felizmente, sobreviveu e com poucas sequelas. Na memória trago lembranças das ferragens, dos acessórios dos banheiros da residência do Jorge, no Condomínio Mandala, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, todos folheados a ouro e de memorável peculiaridade. Mas, as torneiras douradas e o Francelino não se misturaram e os interesses comuns entre ele e o Jorge foram passageiros, porque Francelino veio a se tornar acionista majoritário da Paulo Habib, uma das maiores, senão a maior, empresa projetista do país. Em suas mãos a Paulo Habib rejuvenesceu, se tornou maior e também foi a pique, naufragando vitimada por atrasos no recebimento de faturas e por algumas fraturas expostas colaterais. Tempo depois o Francelino foi orbitar outras esferas, à volta de oportunidades mais interessantes e de discreta abastança, e teve êxito.


Mas, como tudo passa e os sucessos e os insucessos vão se transformando em conversa de bar, porque a fila anda, estávamos, de novo, juntos, na tentativa de conquistar um dos mais interessantes projetos no setor portuário fluvial, uma grande obra de ampliação a ser empreendida no Porto Rosário, na Província de Santa Fé, na Argentina.


No país vizinho, como no Brasil, as decisões de maior relevo costumam transitar sem alarde nos gabinetes palacianos, que cuidam do amoldamento dos ordenamentos mais relevantes no tocante aos casos e aos casos. E, à época, quem mais entendia dos casos e dos seus atalhos, na Argentina, era o articulador italiano, Máximo Del Lago, amigo íntimo do ex-presidente Menem, com quem se envolveu num rumoroso ( um pequeno deslize do Del Lago) caso relativo a veículo da renomada marca Ferrari, dado como regalo ao Presidente, cujo veículo transitou mais como escândalo nos jornais, do que rodando nas avenidas portenhas. E, foi pela influência do Máximo, criatura de excepcional carisma, rigoroso no trajar, elegante no falar e extremamente cuidadoso no agir, que se abriam as portas da Casa Rosada, quando, na cadeira de presidente, estava de passagem a controvertida Cristina Kirchner.


Era final de semana, domingo, a Casa Rosada em off e na mesma trabalhando uns poucos funcionários, apenas o suficiente para agilizar pendências de cunho diferenciado, e sustentar a manutenção da segurança do prédio. Fomos recebidos, Francelino e eu, pelo então Chefe de Gabinete da Presidente Cristina Kirchner, Alberto Fernández, com quem fizemos o desjejum bem ao estilo portenho, com farto sortimento de guloseimas e lácteos vários de excelente qualidade. A conversa não foi rápida, transitou pela política, pela economia, por algumas referências divertidas sobre figuras notórias de ambos os países, e também e com destaque sobre o Porto de Rosário, cuja obra carecia de recursos financeiros e de financiamento internacional. Alberto Fernández encarregou o Coordinator General de la Unidade Presidente, Juan Carlos Mazzon, de conosco percorrer os principais pontos de atração da Casa Rosada, inclusive a sala presidencial. Mazzon tinha vários amigos no Brasil, dentre os quais se destacava como dos mais competentes, Luis Alberto Buffa, que atuava no “Mercosur” e mantinha base de negócios em Curitiba. Conhecemos toda a parte social e a administrativa do Palácio, com breve parada na sacada voltada para a Plaza de Mayo, de onde Evita Perón fazia discursos inflamados, secundada pelo marido que, conforme me cochichou ao ouvido o Francelino, lhe fazia ousadas carícias nas nádegas, estimulando com dedos vigorosos a sua contundente fluidez verbal.


Francelino devia ser a reencarnação de algum operário apontador de obra. Ele anotava em um caderno pautado, no formato de bíblia, tudo o que via, o que escutava, e o que lhe passava de repente à mente, como algo relevante. Sua mão dedilhava a caneta com destreza admirável, mas essa organização me fazia ansioso. Eu tinha por disciplina me esquecer de nomes e de fatos notórios, não guardava endereços e sequer datas importantes. Se torturado fosse, morreria espancado, certamente, mas com a língua presa, não pela discrição, mas pela absoluta incapacidade de lembrar. Assim, coloquei como meta o desaparecimento da “bíblia” do Francelino. Na Casa Rosada, depois do tour pelas suas dependências e das elucubrações sobre as preferências sexuais da Evita Perón, Francelino foi ao toilette e deixou aos meus cuidados a famigerada bíblia. Fiquei trêmulo de emoção. Aquela criatura sinistra, perigosa, paiol de armas poderosas e de outros tantos instrumentos de terror, repousava em minhas mãos indefesa e pronta para o abate. Não tive dúvidas; com a mão direita tomei posse de uma garrafa de Catena Zapata que, como suas gêmeas, estava alojada em estante que decorava o gabinete do Mazzon, que nos ciceroneava. Com a esquerda, e mediante lance vigoroso, atirei pela janela, no rumo da Calle Balcarce, o livro perverso, a bíblia pagã, o repositório das temerárias memórias. Jogado à rua, o petardo se postaria na calçada inerte e sem valor, revelando apenas um amontoado de garatujas e rabiscos sem nexo para os mortais comuns, exceção feita ao desenho do dedo do “teniente general” Perón, cujo membro o Francelino, delicadamente, batizou como “Dênis”. Francelino retornou do toilette e, antes que perguntasse pela bíblia, lhe entreguei a garrafa do Catena, a cujo gesto ele se quedou encantado e reconhecido. Ato contínuo, agradecemos a oportunidade da visita, descemos a Escada Itália, ricamente adornada com motivos renascentistas, e encontramos a rua, quando ele me perguntou: e o meu caderno? Sei lá, pô, que caderno? Acho que você largou no taxi, e desconversei.


Sobre o Porto, a concorrência não prosperou, mas o chefe de gabinete da Cristina Kirchner, o nosso anfitrião Alberto Fernández, cresceu na política e se tornou o atual presidente da Argentina, alçado ao poder no pleito de 2019. Acho que a bíblia do Francelino acabou fazendo falta.

 
 
 

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